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A Ceia












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A ÚLTIMA CEIA

É escasso o que se observa sob a luz coada do fim do dia.
Apenas alguns vêem o que se louva ou prepara. Apenas alguns silenciam o seu
desespero ou agonia. Há quem se erga para ver mais perto ou mesmo de frente
contra a luz que desce das janelas foscas. É apenas um instante breve para que
sobre as cabeças cresça vindo das gargantas secas um zumbido ou rompimento como
se o fogo adensasse os seus cabelos longos. Um pouco ao longe adivinham-se os
campos e entre as trevas rudes pedras e arbustos. É apenas um lugar transitório
e simples. Como simples são as tabernas ou o fontanário donde escorre a água
todos os dias. A paisagem tremula quando as nocturnas aves se abeiram dos
caminhos rugosos. Não é um lugar para morrer. Mas passar a noite paciente ou
escutar o mugir do gado ou a voz cantável de um amor. Um lugar onde a alma de
um homem se inclina alumbrada de companhia e resgate. Louvemos então o dia na
sua vertiginosa e deslavada cor. Enquanto a tempestade não chega. Sobre a mesa
uma toalha imensa como um lençol de núpcias ou bandeira mártir. Os pratos estão
vazios. Apenas algum pão disperso. Um jarro de água. Apenas uma mulher divide o
seu rosto entre todos como uma rosa unindo pela dor sobreposta a cinza de um
segredo. É uma febre invisível que escorre devagar nas veias de alguns.


Que aguardam estes visitantes que nos inundam os olhos?
Quem fala e o que diz para que escutemos as suas palavras como se de chuva se
tratasse e nelas abrigo procurássemos? O que obscurece sobre as sombras das
paredes inundando de silêncio os dedos como se invadidos pela poeira frágil do
tempo? Quem na sua voz responde cerrando todas as portas atrás de si? Quem no
clamor do sacrifício busca refúgio nos prodígios e nos relâmpagos unguento? E
para quem sem julgamento nem humildade nem lamento ascende à terra sem
vislumbre ou padecimento?


O que se vê principia onde começa a nossa cegueira. A
respiração que nos afoga é como as nuvens que sabemos trazerem a tempestade. Ou
a página que seguramos esquecida entre os dedos e olhamos de novo como se
possível fosse termos a límpida certeza que interrompemos o movimento suado de
um punhal ou a direcção insone de uma seta e leves fossemos sobre as águas
entreabertas pelo desenho de uns lábios ao entardecer. Há um sino que toca
inefável como se mergulhado no mar. Um pormenor apenas perante os rostos
erguidos na claridade que resta e fermenta nas sementes cozidas e intocadas. Na
forma exacta de um jarro de barro escuro. Nas sandálias gastas e nas unhas
sujas de terra. E pouco sabemos de tudo isto que observamos como um rumor ou
harmonia lentamente. Apenas um assentimento como se o coração abrandasse para
que os pés se apressassem perante a distância inclemente e apenas na face o
vestígio da dor fosse uma asa ou sulco de lágrima. Alguém humedeceu as suas
mãos com o ruído da luz. A mais límpida das palavras. Quis trazer à noite a
intimidade pura do amor ou apenas a serenidade da morte. Perguntou pelo vinho.
Ninguém ousou tocar ainda no pão como se o movimento desequilibrasse a cena.
Alguém rapou a barba, anotamos com o olhar perdido. E olhamos como se escutando
os cães raivosos nos currais e esquecidos na súbita escuridão suspensa
avançássemos íntimos do seu olhar delicadamente perscrutante. A torrente é
imensa como as estrelas que presumimos martelam no alto dos céus como cavalos
nos seus galopes a noite transbordante de mulheres que pastoreiam nos umbrais
das suas moradas o alento dos corações. Não se pode confiar no que chega
solitário e por toda a terra empresta a penúria ou a subtileza da discórdia. Naquele
que vindo das águas, descalço e ferido lança no ar as torrentes mais secretas
dos abismos e da lentidão. A súplica perene dos pobres e o incalculável tesouro
da revolta. Aquele que ama por deus e obediência. E sobre o joelho prostrado na
terra e no lanho dos látegos e na fornalha do sangue escorrendo resplandece
como se no seu olhar uma espada de ouro elevasse a serpente mais nobre da
alegria. Não podemos deixar que nos convoque para a luz e na penumbra como no
vento impuras deixe a metamorfose obscura do nosso horror ou o tumulto dessa
música que herdamos das palavras infinitas.


Chamo a isto luz. Como se uma sombra desfiasse na
claridade a sua solidão. É uma evidência como o limite que o olhar alcança na
sua exterioridade e deambulação. Na sua espessura a luz é nos seus odores
vazios a cinza entreaberta de uma fenda que atravessamos plenos de nudez e
ornamentamos com a carne da nossa carne que morre como se estremecêssemos.


Alguém tudo isto abandonou deixando sob a tolha esquecidas
as sandálias.


Jorge Velhote
Miramar, 23.11.2011